O feminicídio de Marielle
Marielle poderia ter sido morta por
muitas razões, mas morreu porque conquistou uma parcela de poder
- Ela Wiecko V. de Castilho
- Janaína Penalva
21/04/2018 – 06:30
À
conduta de matar Marielle são atribuídos vários significados a
depender da perspectiva de análise e de matrizes de pensamento. Numa
perspectiva jurídica, o assassinato de Marielle desafia muitas
classificações. É curioso, no entanto, a forte rejeição a
pensá-la como feminicídio, embora tenhamos, desde 2016, um
documento oficial, as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar
e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres –
feminicídios, que reconhece que nem toda a morte de uma mulher
constitui um feminicídio. Entretanto, enfatiza que a investigação
policial de mortes violentas de mulheres e seus correspondentes
processo e julgamento devem ser realizados com a perspectiva de que
essas mortes podem ser decorrentes de razões de gênero, cuja causa
principal é a desigualdade estrutural de poder e direitos entre
homens e mulheres na sociedade brasileira.
Portanto,
a hipótese de feminicídio não pode ser afastada de plano. O senso
comum relaciona feminicídio a contexto de violência doméstica, que
é uma das hipóteses previstas na lei penal. Mas há uma segunda
hipótese que independe desse contexto, envolve menosprezo ou
discriminação à condição de mulher. Mesmo a primeira hipótese
está contida na segunda, porque tanto uma como outra traduzem
violência baseada em relações de gênero desiguais, em que o homem
estabelece a regra e não admite ser contestado pela mulher. Na
categoria jurídica está ínsito o reconhecimento de uma anterior
categoria sociológica e política.
Nesse
sentido todo feminicídio é um crime político. Não no mesmo
sentido de crime político que fala o delegado que investiga o caso,
não há um crime contra a segurança nacional nesse caso. Segurança
nacional é conceito oposto ao de direitos humanos. Marielle lutava
pela segurança humana, pela garantia de direitos fundamentais e não
pela proteção da nação. Moradora de uma área militarizada, ela
se colocou como agente de denúncia do que o Estado pode fazer ao
priorizar a ordem pública e não os direitos individuais.
Por
isso, afirmamos: Marielle sofreu um feminicídio, não importam as
intenções imediatas do autor do crime, sua morte é fruto da sua
insurgência como mulher. Os nove tiros em direção a ela foram
pedagógicos em muitos sentidos, mas foram principalmente uma lição,
um sinal do que o deslocamento da força patriarcal pode provocar. Ao
disputar e conquistar uma posição de poder, comumente ocupada por
homens, Marielle desafiou “o delicado equilíbrio assimétrico”
que assegura aos homens uma posição de superioridade.
Marielle
poderia ter sido morta por muitas razões, mas morreu porque
conquistou uma parcela de poder. Foi a conquista, por uma mulher, de
um espaço de representação política que inverteu posições de
gênero que nos permite qualificar seu assassinato como feminicídio.
A
nomeação de sua morte em termos penais não objetiva, entretanto,
conter seus diversos sentidos ou fundir todas as suas identidades,
mas afirmar que ali existia uma mulher provocando a ordem patriarcal.
Dizer feminicídio, portanto, não significa hierarquizar
desigualdades, essa armadilha só serve para colocar a resistência
em disputa.
Compreender
a dimensão do que essa mulher simbolizava por ter adquirido o poder
de representar outras mulheres e, portanto, de inverter hierarquias é
essencial para se entender o que é feminicídio, fora de contextos
íntimos.
Estado
ou milícia, quem passou ao ato de matá-la não vitimou uma mulher
vereadora porque a cidade era o Rio de Janeiro. O contexto do crime
não foi a insegurança do Rio. O que levou ao feminicídio foi a
ativação da cidadania por uma mulher.
Os
estudos demonstram taxas muito altas de violência contra as mulheres
em espaços armados, seja pelo próprio Estado, seja por quem divide
as armas com ele, paraestatalmente.
Segurança
é, portanto, uma palavra a ser abandonada, é um conceito que tem
sido operado para reforçar hierarquias de poder. Por isso, é também
uma ideia patriarcal, de classe e racista. O paradoxo em que nos
encontramos está posto: quanto mais preocupado um Estado está com a
segurança, mais inseguras estão as mulheres, as minorias e a
própria cidadania.
*Esse
texto cita e opera com ideias desenvolvidas por Rita Laura Segatto em
“Que és un feminicídio. Notas para um debate emergente.”
Disponível em: https://www.nodo50.org/codoacodo/enero2010/segato.pdf
E
Simona Sharoni em Militarism and Gender-Based Violence. Disponível
em:
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/9781118663219.wbegss588
Ela Wiecko V. de Castilho –
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília
Janaína Penalva – Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
Janaína Penalva – Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
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Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-feminicidio-de-marielle-21042018
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