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Grupo de Pesquisa

sábado, 27 de novembro de 2010

Direito ao dissenso.



Direito ao dissenso.
Beatriz Vargas Ramos
“Segundo a investigadora Vera Malaguti, o inimigo público número um está sendo esculpido tendo por modelo o rapaz bisneto de escravos, que vive nas favelas, não sabe ler, adora música funk, consome drogas ou vive delas, é arrogante e agressivo, e não mostra o menor sinal de resignação” (Eduardo Galeano, De pernas para o ar: a escola do mundo ao avesso).

Desde domingo passado, quando surgem os primeiros incêndios de veículos nas ruas do Rio de Janeiro e a imprensa dá início à cobertura dos fatos, uma voz vem repercutindo e crescendo acima do burburinho e do bombardeio – o outro bombardeio, o das imagens, estáticas ou dinâmicas, que vem de todas as direções. Parece existir uma esperança no ar, algo semelhante àquele sentimento que paira em final de copa do mundo, de que, desta vez, sim, a vitória está garantida!
Diz-se que a vitória em questão é a da guerra contra o crime, em especial, o tráfico de drogas, o mais hediondo de todos, encarnado pelo inimigo público nº 1, aquele que convoca todos os ódios, medos e paixões.
Percebe-se em transmissões de rádio e TV uma entonação diferente na voz, um olhar diferente, outra respiração, uma adrenalina, certa dose de euforia, embora contida, na pronúncia de trechos inteiros de um discurso carregado de armamento mortal contra o traficante das drogas ilícitas, uma verdadeira descarga de metralhadora como esta: “Acuados centenas de criminosos, operação prossegue, 450 homens do BOPE e das polícias Militar e Civil do Rio, com apoio inédito de veículos blindados da Marinha, provocou a fuga de centena de criminosos da Vila Cruzeiro”... Tudo parece indicar um final feliz, vence o mocinho e o bandido é eliminado.
Surge no horizonte um outro Cabral que refunda (palavra que voltou à moda moda recentemente) um marco histórico e promete, a partir do Rio, (re)descobrir um novo Brasil em meio aos escombros da batalha contra o crime. Esse Cabral é jovem, cheio de testosterona, como todos os corpos machos envolvidos, heróis ou bandidos desta guerra. Chama a bandidagem para a briga, diz que não vai recuar, não tem medo de terrorista. A ênfase que a imprensa tem dado a esse Cabral não é a de líder de um governo estadual com “estretágias bastante distintas do padrão vigente”, como Cláudio Beato escreveu hoje na Folha de S.Paulo (26/11/2010, A-3).
Estão dizendo na TV que os brasileiros querem blindados e tanques de guerra para defender a “sociedade dos ataques dos criminosos”. E esses brasileiros existem e para nos provar sua existência são levados para a tela da TV. Formam, certamente, a tal maioria numérica (grupo que, sozinho, está em quantidade superior à metade do grupo inteiro) necessária para emplacar um plebiscito pela pena de morte, por exemplo. Despontaram na telinha pessoas que estão acreditando nisso, precisam acreditar, que as Forças Armadas vencerão a guerra contra o tráfico. Houve um cidadão que chegou a manifestar expressamente sua crença de que “no fim, o bem vencerá o mal”. O que estão pedindo os moradores das próprias áreas ocupadas pelas tropas e blindados? Exatamente isso, tropas e blindados! Nunca a voz da favela ecoou tão diretamente ou repercutiu de forma tão imediata junto ao Poder Público. Vocês querem o BOPE? Vocês querem o exército e a marinha? Pois tomem BOPE, tomem exército, tomem marinha! Não é a segurança um direito do cidadão? Na linguagem mercadológica: satisfação total do cliente! As mortes de crianças, idosos, jovens, homens e mulheres não diretamente envolvidos são efeitos colaterais do combate necessário.
Ora, mas essa é a fala dos que querem fazer da segurança pública a máquina para matança de brasileiros pobres, traficantes ou não traficantes, bandidos ou mocinhos! Esse discurso pode se voltar facilmente contra UPP’s, contra polícia cidadã, pode minar condições para construção de qualquer coisa distinta do BOPE e reverter as possibilidades de tratamento da questão da violência na linha dos direitos humanos.
Hoje eu ouvi no rádio um comentarista dizendo que Forças Armadas são treinadas para matar o inimigo e, portanto, “se todos querem as Forças Armadas nesse conflito, que depois não venham chorar os cadáveres espalhados”.
Sinto-me mal, dói a cabeça, o estômago arde, fico indignada... Discuto sozinha na sala, em frente à TV... O Merval Pereira também entende de segurança pública! Estamos salvos... E eu que nem sabia dessa... Já cheguei a pensar que ele era o dublê de voz do Alf, o ETeimoso , mas – quem diria! – não sabia de sua expertise em estratégias contra o crime. Acaba de sugerir o corte de todo e qualquer tipo de comunicação, com o mundo externo, dos líderes do tráfico que sairam de Catanduvas para Porto Velho.
E se a queima de automóveis não for por causa das UPPs? E se as milícias tiverem uma função mais importante nesse cenário?
Entretanto, não é implausível que traficantes dos morros do Rio reajam desta forma se estiverem diante da dificuldade de sobrevivência dos pontos de comercialização da cocaína ou, pior, na iminência de perder o controle sobre a venda da droga proibida.
(Aos traficantes “incluídos”, aptos ao exercício do consumo graças ao negócio lucrativo da cocaína, não interessa a descriminalização, porque outra é a lógica do mercado lícito, onde reassumirão o status de simples excluídos da ordem legal – dominada que é pela elite financeira, pelos ricos que podem consumir qualquer droga ilícita ou comercializá-la impunemente).
Como será que reagiriam, por exemplo, os empresários do fumo e do álcool se, por qualquer razão, absurda razão, fossem ameaçados de perder seu business? A diferença entre ambos, além, é claro, do selo de licitude/ilicitude do produto comercializado, é que o primeiro negócio gera muito mais dinheiro e movimenta uma outra indústria da morte, a das armas e munições.
Algum dia talvez se possa desmanchar esse falso consenso de que o proibicionismo penal, com a produção de cadáveres, culpados ou inocentes, vai derrotar o tráfico e deixar o Rio de Janeiro – e o resto do mundo – livre da droga. Hoje já se percebe alguma tolerância em relação à maconha, fala-se em consumo recreativo de maconha na Califónia, a maconha é cultivada na Califórnia. Está deixando de ser negócio de índio e está virando negócio de branco. Não demora a sair a legalização...
Essa guerra não é nossa. Não é carioca, não é brasileira e nem sulamericana. Que me desculpem certas personagens da nova esquerda punitiva, limpinha, engomadinha e que não fala palavrão, é injustificável o investimento de tantos recursos a serviço na eliminação física dos pobres. Massacre não significa mais segurança pública, é apenas o serviço do business dos equipamentos e tecnologias de segurança produzidos pelos países ricos. Essa guerra não existe para acabar com a droga. Jamais terá fim essa guerra infinita. Somente pausas, tréguas, intervalos. É para ser consumida no formato novela, seriado. Trata-se da guerra pela guerra, um outro bom negócio que não pode acabar, neverending war...
Produto altamente rentável no mercado, a guerra também é sensacional. Ela consome armamento e tecnologia e vende cinema, novela, jornal, cultura para a massa. Imagens reais e fictícias. A guerra vende sensação. No fim, a guerra é do mesmo partido que a droga, o partido da sensanção, ela promete o mesmo que a droga.
Ainda pior que o consenso da lógica beligerante no terreno das drogas é a impossibilidade do dissenso – arrogante, violenta e antidemocrática. Por que não discutir princípio de segurança pública, ao invés de alimentar o espetáculo produtor de ethos heróicos e guerreiros, papéis historicamente destinados aos eternos derrotados, de ambos os lados, dessa estúpida guerra, os jovens pobres que vêm do mesmo lugar, uns para serem policiais e outros para serem bandidos? Não, isso não é um set de filmagem, isso é real.
É real o fogo marginal que se espalha pelo asfalto fazendo vítimas de verdade. Não é faz-de-conta o fogo oficial que sobe o morro para deixar mais corpos no chão. Ao final, a luz não vai se acender, não haverá cortinas a se fecharem sobre uma grande tela escura por onde desfilarão os créditos da obra. Não, não haverá um fundo musical, enquanto nós, passivos espectadores, mudamos de canal, do jornal nacional para a novela das oito, com a agradável sensação de que é o mundo que está mudando para melhor (ou para pior, quem sabe?). O depois será o saldo da violência, a morte, a dor, a intensificação do ódio, na sequência, o esquecimento e, com ele, outros jovens, pobres e negros, retomarão os postos dos bandidos mortos. A guerra continua, já pode recomeçar.
Essa queima de carros e ônibus praticada no palco social visível da classe média pede uma resposta imediata, é verdade, uma reação pronta, de força e manutenção da ordem. Mas é pontual, uma reação momentânea, porque não dá para transformar as forças armadas na força de segurança das cidades brasileiras, seja o Rio ou qualquer outra. Irmão invisível, grande irmão que nos vê a todos, anjo do bem que abre para nós suas janelas de ver o mundo, deixe-nos em paz com nosso sofrimento. Não nos queira convencer que essa guerra é boa, que é a única saída possível e vai nos livrar de todo mal da droga para sempre, amém.
A discussão pública corre o risco de seguir, mesmo depois do fim das recentes eleições, a mesma linha estúpida, simplificadora e maniqueísta entre o bem e o mal, no caso, a guerra ou a droga. Por favor, que se respeite ao menos o direito que as minorias (grupo que, sozinho, é menor que a metade do grupo inteiro) têm ao disssenso! 

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Até onde pode chegar a guerra ao tráfico

Por Mayra Cotta
"Cada diminuição do poder é um convite à violência", já advertia Hannah Arendt, em seu livro Sobre a Violência, "pelo menos porque aqueles que detêm o poder e o sentem escapar de suas mãos, sejam eles os governantes, sejam os governados, têm sempre achado difícil resistir á tentação de substituí-lo pela violência", continua a filósofa. E certamente essa reação dos traficantes acuados pelas Unidades de Polícia Pacificadora - as chamadas UPPs - foi prevista pelos articuladores desse modelo, que sempre puderam antecipar que a pacificação não seria tão pacífica assim. Afinal, si vis pacem, para bellum - se queres a paz, prepara a guerra.
Mas se o brocardo latino serviu ao projeto de poder de Cìcero, há mais de dois mil anos, é preciso ter bastante cautela, hoje, na escolha da violência como tática. Isso porque, apesar do entusiasmo de Rodrigo Pimentel - o consultor de segurança pública da Rede Globo e a figura inspiradora do personagem Capitão Nascimento, que disse estar confiante na capacidade da polícia em enfrentar os traficantes -, a violência traz com ela uma fonte de arbitrariedade em suas conseqüências, estando os resultados das ações humanas, quase sempre, para além do controle de seus protagonistas. Por mais que os diversos "especialistas" em segurança pública insistam em fazer previsões sobre o desfecho dessa guerra, ninguém é capaz de ponderar o imponderável.
Não se trata de uma mera análise nos termos aparato de guerra do estado versus aparato de guerra do tráfico, pois o palco das batalhas, as estratégicas de cada lado, a proximidade com a sociedade, as possibilidades de barganha, a capacidade de resistência, tudo isso pode influir de forma determinante nos resultados do confronto, de uma maneira impossível de se prever. Uma coisa, porém, é certa e, novamente, Hannah Arendt é esclarecedora: "o perigo da violência, mesmo se ela se move conscientemente dentro de uma estrutura não extremista de objetivos de curto prazo, sempre será o de que os meios se sobrepõem ao fim. Se os objetivos não são alcançados rapidamente, o resultado será não apenas a derrota, mas a introdução da prática da violência na totalidade do corpo político. A ação é irreversível (...) a prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável é para um mundo mais violento".
Dessa forma, o controle policial permanente e a repressão ao tráfico constante não parecem ser uma resposta definitiva à questão da segurança pública, muito menos representam, em si, um modelo de política que pretende promover a cidadania e a diminuição do número de crimes. E parecia que o Governo do Rio de Janeiro estava consciente disso.
Quando o modelo das UPPs começou a ser implantado, um aspecto chamou a atenção dos menos entusiastas desta política de segurança pública - e não é o fato de as pacificações terem acontecido apenas nos lugares mais turísticos, preparando a cidade para os grandes eventos esportivos de 2014 e 2016. Na verdade, sempre pareceu estranho que todas as comunidades ocupadas eram controladas pelo ADA (Amigos dos Amigos), permanecendo o CV (Comando Vermelho) intocado no seu domínio territorial. Por que foi feita essa opção (só posso pensar que foi uma opção consciente da Secretaria de Segurança Pública, por não se tratar de um mero detalhe que pudesse passar despercebido entr os técnicos)?
Otimista que sou, pensava que se tratava de uma estratégia bastante inteligente por parte do governo Cabral: o Estado estaria enfraquecendo uma das facções para que os traficantes se unissem sob uma única força para-estatal, no caso, o Comando Vermelho. Neste quadro, as negociações entre Estado e tráfico seriam facilitadas, além de cessarem os confrontos entre as facções - bem frequentes, diga-se de passagem. Vários problemas poderiam ser resolvidos com essa manobra. Basta ver, em São Paulo, o sucesso que foi a estratégia do Estado de sentar para negociar com o PCC (Primeiro Comando da Capital): o índice de homicídios despencou e não se repetiram os episódios de terror de 2007.
E tudo parecia caminhar nesse sentido. Em nenhuma das comunidades ocupadas, houve confronto violento entre policiais e traficantes, que saíam dos morros antes de iniciada a ocupação. O tráfico dava mostras de estar se organizando - especialmente na Rocinha (controlada pelo ADA) e no Complexo do Alemão (controlada pelo CV) - no sentido de reunir forças suficientes para sentar à mesa e negociar com o governo. Afinal, os traficantes também sabem que não é interessante para eles manter seus negócios de varejo de drogas sob a constante mira da polícia.
Até mesmo o início dos ataques a ônibus e carros poderia ser visto como um "convite" ao governo, por parte do tráfico, para que as vias de negociação fossem abertas. Mas agora nós nunca vamos saber se esse era, de fato, o plano. E também não importa mais. Os acontecimentos dessa semana, o ânimo da população e, em especial, o controle de perto da ação policial por parte da mídia não permitirão que qualquer negociação seja feita. Todos pedem que a polícia parta para cima, que enfrente, de forma definitiva, os traficantes, e expurgue deste mal o Rio de Janeiro.
Mas há alguma possibilidade de o tráfico de drogas acabar? Como todo empreendimento capitalista, o varejo de entorpecentes é sustentado pela outra ponta da oferta, que é justamente a demanda. Assim sendo, enquanto houver demanda por drogas, enquanto houver consumidores de entorpecentes, a venda destes permanecerá. E outra grande vantagem do capitalismo, que permite o enfrentamento de graves crises, é justamente a sua capacidade de renovação e adaptação, bem como a sua independência em relação às pessoas nele envolvidas. Ainda que a polícia conseguisse, nessa noite, exterminar todos os traficantes cariocas, poderia até demorar alguns dias, mas muito em breve as vendas seriam retomadas e reorganizadas. Havendo demanda, permanece a oferta; havendo a possibilidade de lucro, permanece o empreendimento do capital. Ninguém acha que a Coca-Cola ou o McDonald´s ruirão se seus CEO´s e demais funcionários forem assassinados.
A guerra ao tráfico já há muito tempo existe, sendo que nas últimas décadas contou até mesmo com o fortíssimo aparato militar dos EUA em aprtes da América do Sul. No Rio de Janeiro, ela faz milhares de vítimas ao ano. E é possível dizer que a sua influência na diminuição do tráfico foi mínima, uma vez que o consumo permanece e se intensifica, inclusive com a diversisifcação do mercado, que hoje conta com as drogas sintéticas.
Por outro lado, a violência da guerra pode ter seus efeitos sentidos na perda de poder por parte do Estado, que insiste na tática da repressão violenta. Já que não cabe ao Rio de Janeiro promover a legalizaçã0 - que já está passando da hora de ser discutida entre os países - a negociação do governo com o tráfico parece ser um caminho interessante. O que não é possível é continuar acreditando que a repressão policial acabará com o tráfico ou que o assassinato de traficantes pacificará a cidade. E, mais uma vez recorrendo a Arendt: "é insuficiente dizer que poder e violência não são o mesmo. Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. (...) A violência pode destruir o poder; ela é absolutamente incapaz de criá-lo".

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Leituras feministas do Direito


No último dia 10 de novembro, às 19h30, no Auditório Joaquim Nabuco (FA/UnB), o Grupo Candango de Criminologia organizou um evento integrante da X Semana de Extensão da UnB (SEMEX), denominado “Leituras feministas do Direito”. A mesa foi composta por cinco professoras de áreas distintas – Antropologia, Direito, Psicologia, Serviço Social e Sociologia.

As Debatedoras do evento foram as Professoras Doutoras Rita Segato (Departamento de Antropologia e Bioética/UnB), Ana Liési Thurler (Departamento de Sociologia/UnB), Gláucia Diniz (Departamento de Psicologia Clínica/UnB) e Marlene Teixeira (Faculdade de Serviço Social/UnB).

A primeira a expor foi a Professora Dra. Rita Segato. Ela iniciou sua exposição tratando do tema das violações a direitos humanos de mulheres, sofridas durante o período ditatorial na América Latina, e do uso dos termos "femicídio" ou "feminicídio" para assassinatos cometidos contra mulheres. Rita Segato diz que essa categoria ainda nao é reconhecida pelo Direito...

Como exemplo da ocorrência do “femicídio”, a Professora citou o caso do "cadáver do campo algodoeiro", em Juárez, México. E questiona: "como tratar casos em que mulheres morrem apenas por serem mulheres?" Para tanto, segundo a Professora, ‎"é preciso pensar na complexidade do conflito que resulta na violência doméstica", no próprio conflito de gênero.

Para se pensar no conceito de femicídio, Rita Segato diz que os crimes cometidos contra as mulheres são sempre incluídos para o contexto de "guerra interna", dentro do conceito de genocídio. Mas cita os casos dos conflitos de El Salvador, Honduras e Guatemala, em que o número de mulheres assassinadas supera em muito o número de homens, com a ressalva de que as mulheres “que pegam em armas” representam um número muito mais reduzido do que os homens, que lutam diretamente entre si.

Para a discussao dos crimes sexuais cometidos contra as mulheres, é importante ver o papel da sexualidade, como meio ou como fim. Nas guerras civis, a violência sexual é considerada uma forma de se “ocupar um território” – utilizada como meio. Nos casos em que a violência se dá na esfera privada – como a praticada por maridos ou companheiros, a sexualidade é considerada como fim da violência.

A segunda Professora a expor suas opiniões foi a Glaucia Diniz, do Departamento de Psicologia Clínica da UnB. No início de sua exposição, a professora indicou que sua apresentação poderia ser considerada uma "provocação psicológica" para se ler o Direito. A professora fez um breve histórico do Feminismo, citando a obra “Reflexions on Gender and Science”, de Evelyn Fox Keller, publicada em 1985. Explicou, ainda, que os conceitos de “gênero” e “ciência” são categorias socialmente construídas, passando assim a uma segunda questão: a pretensa "neutralidade" da ciência psicológica. Segundo Gláucia Diniz, "os vieses dos psicólogos funcionam como lentes que distorcem o mundo". Cita também a filósofa Nancy Fraser e o conceito de “androcentrismo”, destacando: "pensar gênero é pensar família, politica, à luz deste pensamento androcêntrico, destes padrões de valores androcentricos constantemente institucionalizados". Como exemplo, a professora citou as eleições presidenciais, em que vários assuntos foram colocados na pauta exatamente por haver duas mulheres na disputa à Presidência da República.

Prosseguindo na evolução histórica sobre o Feminismo, Gláucia Diniz disse que, nos anos 1970, o sexismo afetou a análise de diversas patologias infantis, em que mulheres foram responsabilizadas pela herança destas patologias, sendo que os pais sequer foram analisados. Um estudo da American Psichologycal Association (APA) de 1975—1985, detectou que a mulher era a grande causadora de problemas de saúde na família!

Para a professora, o principal impacto do feminismo foi a conscientização sobre o papel político e transformador do conhecimento. O pensamento feminista desconstruiu uma série de categorias (científicas) construídas de forma preconceituosa, e destinadas a manter estes preconceitos. Houve reflexões importantes sobre a complexidade das questões associadas ao Feminismo, como, por exemplo, é o caso da própria concepção de família.

Em sua apresentação, Gláucia Diniz cita a Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cláudia Fonseca, e alerta para um risco das concepções feministas, ou reafirmadoras de gênero: "ao desejar a igualdade, desqualificamos a noção de diferença, o que pode gerar mais inferioridade".

Partindo de três conceitos tão complexos e diferentes, como são gênero, Psicologia e Direito, Gláucia Diniz destaca os desafios em torno da violência contra a mulher. O primeiro aspecto é a necessidade de se perceber a complexidade e a (necessária) diferença de tratamento entre mulheres que sofreram uma única agressão, em relação a uma mulher que passa 30 anos sofrendo abusos. São, igualmente, atos que configuram violência contra a mulher, mas que requerem tratamentos completamente diferentes. Ressaltou que, na observação das práticas judiciais e do Feminismo, a tendência dos próprios juízes é de penalizar mulheres vulneráveis.

Outra referência citada por Gláucia Diniz foi Helena Machado, Professora de Sociologia da Universidade de Minho (Portugal).

Finalizando a intervenção de Gláucia Diniz, a Professora Ela Wiecko comenta que, no campo jurídico, se usam os conceitos psicológicos como se fossem "verdades irrefutáveis". Como se viu da apresentação da Professora, estas constatações dos componentes das agências formais de controle penal estão equivocadas.

Em seguida, passou-se a palavra à Dra. Ana Liési, Professora do Departamento de Sociologia. Também iniciou a sua fala aderindo à posição trazida pela Professora Gláucia Diniz, de que não existe neutralidade nas ciências sociais, humanas. Explicou que, “na Modernidade, a democracia nasceu sexuada, classista e racializada". Citou como referência o livro "História das mulheres no ocidente", de Georges Duby e Michelle Perrot.

A professora foi categórica ao dizer que “as legislações são direitos definidos pelos homens: a produção de leis foi feita por meio de um parlamento monossexuado, manifestando claramente a defesa da ordem patriarcal". E também fez um resgate histórico, ao citar a primeira parlamentar brasileira, Carlota Pereira Queiroz (1933), seguida depois de Berta luz, em julho de 1936.

Outras fontes de pesquisa citadas foram Catharine Mackinnon, especialmente sua obra Women's livès, men's laws, e Pierre Bourdieu, com “A dominação masculina”.

Para finalizar sua intervenção, a Professora Ana passou à discussão sobre a Lei nº 12.318/2010 (Alienação Parental). Citou dados do IBGE, de 2008, sobre a filiação no Brasil: somente 1 em cada 3 crianças brasileiras nascem no casamento. Defende ainda: “direitos reprodutivos são direitos humanos”, e cita algumas iniciativas legislativas que visam a cercear estes direitos, como é o caso do chamado “Estatuto das Famílias”, em trâmite na Câmara dos Deputados. Em relação às frequentes “oscilações legislativas”, levanta uma importante questão: “como perpetuar a contradição da ‘maternidade compulsória’ (sem direito a aborto) com uma ‘paternidade optativa’?”.
Segundo a Ana Liési, a lei da alienação parental desqualifica e deslegitima testemunho da mãe e da criança.

A Profa Marlene Teixeira, do Departamento de Serviço Social da UnB, foi a última a debater no evento. Citou Pierre Bourdieu e Michel Foucault para falar da ocupação masculina no sistema de justiça. Marlene fez uma síntese das falas das demais professoras, inserindo em sua fala o papel do Serviço Social para o desenvolvimento do sistema de justiça. Para ela, o/a assistente social tem a função de ajudar na "busca da verdade", sobre a família e a sociedade. A Professora também citou a contribuição da proposição de políticas públicas, como saúde e educação, para o reforço de muitos conceitos do sistema de justiça.
Passando ao Feminismo, a Professora Marlene diz que o protagonismo de se olhar o Direito por uma perspectiva feminista é um fenômeno mais amplo que ocupa espaço importante que pode ajudar na "desjudicialização" da sociedade brasileira.

Assim que a Professora Marlene terminou a sua fala, passou-se a uma “rodada de perguntas”: alunos perguntaram, principalmente, sobre a inclusão do homem na discussão sobre o Feminismo e a contextualização do conceito de misogenia.
Rita Segato responde à primeira pergunta, já dizendo que a Modernidade produziu armadilhas, como o próprio femicídio. As mulheres, geralmente, não contemplam seu próprio universo particular, preocupam-se em se adequar ao universo masculino, e não se vê ao contrário – o homem se adaptando ao universo feminino.

A Professora Rita Segato ainda indicou as cinco características fundamentais do homem moderno de sucesso: ser branco, heterossexual, "letrado", pai e proprietário. Segundo Rita, “quem não tem uma dessas características, tem que se ‘travestir’ para se adaptar”.

A Professora Ela ainda comentou sobre o “incômodo” do aluno ao ver que só há mulheres na mesa de debates. Esta observação foi feita pelo aluno, no momento em que formulara a pergunta. Em resposta, Ela "inverteu" a pergunta, ao dizer que, nas práticas judiciárias, a situação é completamente oposta: as posições são essencialmente masculinas. Quando alguma mulher se destaca, ela é quem incomoda.

Em relação ao conceito de misogènia: “a mulher é um ser inferior”. Trata-se de ima ideologia que subestima e desqualifica a mulher.

O evento foi muito produtivo, contou com a presença de vários alunos dos cursos de Direito, Letras, Filosofia, Ciências Sociais, Ciência Política, entre outros. Todas as falas foram suficientemente claras e ensejaram uma série de discussões sobre o papel da mulher nas práticas judiciárias, no enfoque jurídico sobre a violência de gênero e, principalmente, sobre a necessidade de se considerar vários aspectos de um mesmo problema, sob uma perspectiva multidisciplinar e complexa.


“Referências”

1 – Feminicídios – Massacre do “Campo algodoeiro” : Link para notícias: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=40538&busca=
Twitter: @Feminicidios

Filme sobre o massacre de Juarez: Cidade do Silêncio (Bordertown ) Gregory Nava. EUA/ Reino Unido, 2007.

2 – Sobre Evelyn Fox Keller: http://en.wikipedia.org/wiki/Evelyn_Fox_Keller

3 – Sobre Nancy Fraser: http://pt.wikipedia.org/wiki/Nancy_Fraser

4 – Sobre Cláudia Fonseca:
http://www.comciencia.br/reportagens/mulheres/12.shtml
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4781974Z8

5 – Sobre Helena Machado:
http://www.ces.uc.pt/investigadores/cv/helena_machadoen.php

6 – Sobre Catharine Mackinnon:
http://en.wikipedia.org/wiki/Catharine_MacKinnon

7 – Pierre Bourdieu, “A dominação masculina”:
http://www.scribd.com/doc/22202066/BOURDIEU-Pierre-A-dominacao-masculina

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Tratar bandido pobre como bandido

Por Mayra Cotta

A prisão representa um tremendo desconforto na sociedade atual. Até os cidadãos mais punitivos e rigorosos não estão de acordo com as práticas cotidianas de um presídio brasileiro. Não é possível acreditar que mesmo aqueles defensores de máximas do tipo “bandido deve ser tratado como bandido” sejam entusiastas da realidade carcerária: homens e mulheres submetidos diariamente a tortura, espancamento, estupro, violências de diversos tipos e condições insalubres (celas lotadas e sem ventilação, comida podre, instalações sanitárias precárias). O cárcere, sem dúvidas, é refratário aos direitos humanos e a práticas humanizadoras.
Para entender melhor essa característica marcante das prisões, fundamental abordar a dimensão política do surgimento das prisões como locais a serem cumpridas penas, que coincide com o momento de formação do sistema capitalista. Importante destacar que a prisão, existente desde os tempos bíblicos, passa a existir como pena apenas a partir de sua elaboração racional, no Iluminismo, que repudiou os suplícios e castigos físicos. No período de transição entre a fogueira e o cárcere, os séculos XVI e XVII assistiram a diversas tentativas de se dar valor econômico aos criminosos e aos excluídos do trabalho de maneira geral, mandando-os remar nas prisões flutuantes ou trabalhar nas casas produtoras de arsenais e até mesmo nas minas e nas obras públicas.
Com o surgimento da fábrica, vem a necessidade capitalista de não apenas corpos dóceis para nela trabalhar, como também de um exército industrial de reserva, o que transforma o cárcere em importante ferramenta de fortalecimento do novo sistema econômico.
Conforme explicado por Marx, no famoso capítulo sobre a acumulação primitiva, d’O Capital, a transformação do dinheiro em capital e a produção de mais-valia a partir deste e a produção deste a partir de mais-valia pressupõem a existência de grandes quantidades de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores. Para tanto, é necessário que, em dado momento, essa concentração de capital e força de trabalho nas mãos de poucos produtores aconteça de alguma forma.
É o que ele chama de acumulação primitiva – o processo que dissocia o trabalhador da propriedade dos meios de produção – procurando demonstrar que não se tratou de uma transição pacífica, na qual os trabalhadores mais esforçados foram capazes de acumular riquezas, enquanto a população vadia ficou sem ter o que vender além do próprio corpo. Bem ao contrário, os trabalhadores libertados da servidão e da coerção corporativa tornaram-se vendedores de si mesmo “depois que lhes roubaram todos os seus meios de produção e os privaram de todas as garantias que as velhas instituições feudais asseguravam à sua existência”, por meio de um violento processo expropriatório.
A acumulação primitiva tem lugar no momento de transformação da exploração feudal em exploração capitalista e está marcada por transformações que alavancam o novo sistema econômico, como os “deslocamentos de grandes massas humanas, súbita e violentamente privadas de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como levas de proletários destituídas de direitos”. Neste momento, surge o pauperismo como conseqüência deste processo expropriatório e os pobres nas cidades começam a se transformar em problema social. É neste contexto, que a prisão como pena surge, sendo propostas, em diversos países, leis que permitissem o encarceramento e trabalho compulsórios dos pobres.
Dessa maneira, a prisão vai adquirindo uma das suas feições mais marcantes da sua institucionalização como pena, qual seja, a produção de identidade entre o não-proprietário e o criminoso. Máximo Pavarini explica que o cárcere tinha como objetivo a reafirmação da nova ordem social burguesa que surgia, devendo educar o criminoso para ser proletário socialmente não perigoso, isto é, para ser não-proprietário sem ameaçar a propriedade. A pena de prisão, neste momento histórico de consolidação do capitalismo, assume a tarefa de fabricar proletários, ou seja, transformar o sujeito detido em um ser disciplinado, pronto para exercer seu papel na sociedade industrial, forçado a aprender a disciplina da fábrica. Havia, então, apenas dois possíveis lugares para os desapropriados: o cárcere ou a fábrica.
Esta perspectiva materialista da pena de prisão – até os dias de hoje, a principal forma de punir – ajuda a entender as movimentações políticas presentes no contexto de surgimento da prisão como pena, com destaque para seu papel na construção do sistema capitalista. Surgido especialmente para os pobres, até hoje, o presídio é um local freqüentado exclusivamente por eles e, por certo, reside aí uma forte razão para que o encarceramento permaneça sendo uma experiência profundamente desumanizadora.

Publicado também no Blog Brasil & Desenvolvimento

http://brasiledesenvolvimento.wordpress.com/2010/11/18/tratar-bandido-pobre-como-bandido/

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Leituras Feministas do Direito - 10/11, 19h, Aud. Joaquim Nabuco - FA/UnB

O GCCrim convida a tod@s para a Mesa Redonda “Leituras Feministas do Direito”, atividade que acontecerá como parte da X Semana de Extensão da UnB.
O objetivo é debater o Direito a partir da perspectiva feminista da Antropologia, do Serviço Social, da Ciência Política, da Sociologia e da Psicologia de maneira a construir uma leitura de como as diferentes áreas de conhecimento avaliam o impacto do Direito na vida das mulheres, do âmbito privado ao público, ressaltando algumas questões concretas, tais como o aborto, a violência de gênero e as políticas afirmativas.
As Debatedoras do evento serão as Professoras Doutoras Ana Liési Thurler (Departamento de Sociologia/UnB), Gláucia Diniz (Departamento de Psicologia Clínica/UnB), Marlene Teixeira (Faculdade de Serviço Social/UnB), Rita Segato (Departamento de Antropologia/UnB). A mediadora do debate será a Professora Dra. Ela Wiecko.
O evento será no dia 10 de novembro de 2010, às 19h, no Auditório Joaquim Nabuco (FA/UnB).

Para ver a programação completa da X Semana de Extensão da UnB, acesse http://www.semanadeextensao.unb.br/

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Publicações do GCCrim: Relatório de pesquisa

No dia 18 de março de 2010, o Grupo Candango de Criminologia (GCCrim) lançou o relatório de pesquisa "Roubo e furto no DF: avaliação da efetividade das sanções não privativas de liberdade”. A pesquisa, coordenada pelas Professoras Ela Wiecko Volkmer de Castilho e Fabiana Costa Oliveira Barreto, foi executada pela equipe de pesquisadores do GCCrim, contando com a valiosa colaboração do Estatístico René Raupp, do MPDFT. A pesquisa qualitativa contou com a coordenação da Dra. Liana Fortunato Costa, docente do programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da UnB.

Como a Professora Ela Wiecko ressaltou no evento de lançamento da pesquisa, foram quatro anos de estudos, levantamentos e discussões públicas sobre os resultados. O interesse do público sobre a pesquisa foi expresso na VIII Semana de Extensão da UnB, em 2008, no Fórum Social Mundial, em janeiro de 2009 (em Conferência Livre preparatória à Conferência Nacional de Segurança Pública – CONSEG), e em maio de 2009, em seminário sobre política criminal realizado em conjunto com o Centro Acadêmico de Direito da UnB.

A pesquisa pretende despertar o interesse de profissionais e de toda a sociedade a respeito do funcionamento do sistema de justiça criminal e nortear alterações nas suas práticas, de modo a atender os direitos de processados, condenados e das vítimas.

Confira a íntegra do relatório:




Relatorio Penas Alternativas UnB