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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Estamos cegos

Estamos cegos


Beatriz Vargas Ramos


No último domingo, 30 de janeiro, eu li, na Folha de S.Paulo, o artigo intitulado “Como cego em tiroteio”, assinado por Ferreira Gullar – pessoa que dispensa apresentação, um dos maiores poetas de língua portuguesa, admirado por milhões de pessoas, entre as quais eu me incluo. O artigo abre uma série de questões importantes para um debate público sobre o assunto das drogas. Diz o autor do texto que “A solução do problema do tráfico está na redução do número de consumidores de drogas”. Não há dúvida de que, também no mercado das drogas ilícitas, a oferta do produto guarda relação direta com a demanda. Se existe oferta é porque existe procura por droga. Aqui, bem entendido, “solução” do tráfico de droga é algo que somente pode ser concebido na linha da “redução” do problema e não da sua “eliminação”. Simplesmente porque não há como acabar com a droga. Seu consumo, prática universal e milenar, não é um acontecimento anormal, alheio ou paralelo à vida em sociedade, mas, ao contrário, é um fenômeno a ela inerente e por ela mesma produzido – vale dizer, normal, o que não se confunde com saudável ou recomendável.
O lema que marcou a Assembléia Especial da ONU, em junho de 1998, ocasião em que a UNODCCP – United Nation’s Office for Drug Control and Crime Prevention – adotou o plano Scope (Strategy for Coca and Opium Poppy Elimination) de erradicação, até 2008, de todos os plantios de coca e papoula do planeta, de forte carga propagandística, nada tem de realista: “a drug free world: we can do it”! Levada às últimas consequências, a promessa de erradicação plena do plantio de papoula, por exemplo, conduziria à extinção da morfina, usada para aliviar o sofrimento de pessoas que têm membros amputados ou para aplacar a dor de doentes graves ou terminais. Numa adoção às avessas do tema de uma outra propaganda, a da campanha eleitoral de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos, em 2009, poder-se-ia dizer, em relação ao projeto irreal de “tornar o mundo livre de drogas”, “no we can’t!”. Não, nós não podemos varrer a droga do planeta. O ideal de uma sociedade sem drogas não corresponde a uma decisão individual – ou coletiva – por uma vida sem drogas, a não ser que queiramos impor aos outros – por qualquer “boa” razão, nossa sempre boa razão, na melhor das intenções de espalhar o bem e não deixar perder as almas, seja por motivos de ordem médica, filosófica, religiosa, jurídica – nossa convicção pessoal de não tomar vinho ou uísque, de não fumar tabaco nem maconha, de não usar viagra e lexotan, de não comer chocolate, não cheirar lança-perfume ou não aspirar cocaína... Não é porque o uso do álcool, sobretudo seu abuso, produz efeitos nocivos à saúde das pessoas que vamos proibir sua produção e circulação – ou, mais ainda, não é por isso que vamos incriminar as diversas ações que vão do plantio da cana-de-açúcar, passando pela produção de bebidas alcoólicas, até o armazenamento, transporte e comércio dos produtos. De pleno acordo com Ferreira Gullar, quando ele diz que reduzir o número de consumidores é algo que tem de passar pela informação – ampla e qualificada, além de acessível ao maior número de pessoas – sobre a natureza e os efeitos destrutivos da droga. E aqui, eu diria, não apenas das drogas ilícitas, mas também das inúmeras drogas lícitas, produzidas pelo lucrativo business das mega empresas farmacêuticas que dominam o mercado da saúde e que se acham à disposição do freguês de qualquer sexo, idade ou lugar social. No campo das drogas lícitas, os interesses dos produtores e comerciantes das drogas lícitas, farmacêuticas ou não, como o próprio álcool e o cigarro – sabemos! – são muito mais importantes que a saúde pública (que me corrijam os mais entusiastas da telinha, mas faz pouco tempo que eu comecei a ver campanhas televisivas de orientação contra o consumo de álcool entre os adolecentes).
De nossa parte, nós, ocidentais em geral, não demandamos muita informação sobre nossa própria saúde, e desde há muito que já entregamos a terceiros – os médicos – o domínio sobre nosso corpo, ou seja, nos livramos da responsabilidade de obter os mais elementares conhecimentos sobre nosso organismo e do esforço de zelar pela nossa própria saúde física e mental. Terceirizamos nossa saúde, para usar uma palavra moderna. Não há dúvida de que o acesso à informação é a melhor forma para pessoas maduras, livres e capazes poderem exercer, no mínimo, aquilo que se chama de administração pessoal, e o mais segura possível, do uso de droga, qualquer droga. Por isso mesmo, faz sentido pensar que o conhecimento e a informação – desde logo varridos do vocabulário da política proibicionista que inventou o conceito de droga ilícita – pode levar até mesmo à abstenção do seu uso, e, consequentemente, à redução da oferta, na via da redução da demanda. E, no entanto, sabemos, mesmo a informação mais ampla e qualificada sobre drogas não pode ter pretensões de colocar fim ao consumo. O comportamento consumista, qualquer que seja o produto, é influenciado pelos desejos e pelas necessidades do consumidor e este é o espaço do indivíduo consigo mesmo, onde a tomada de decisões é pessoal e cada um escolhe o que quer para sua própria vida. A tutela estatal encontra seus limites nessa esfera de exercício da liberdade individual. A atividade do poder legislativo de seleção de condutas que deverão constituir crime não se confunde com o poder de impor convicções éticas, religiosas ou morais. Aqui, simplesmente, não há porquê emitir um juízo de valor sobre os desejos e necessidades de cada um, como também não há como desconhecer influências de toda ordem no processo mesmo de formação desses desejos e necessidades – o que apenas demonstra a fragilidade do conceito de livre arbítrio, de liberdade de escolha na origem da ação humana (somos livres para fazer exatamente o que já foi eleito como modelo de conduta, para imitar o comportamento da classe dominante, para assimilar os símbolos de poder e dominação, para nos inscrever na realidade segundo os padrões aceitáveis e determinados pela cultura de massas, enfim, somos livres para “escolher” o tênis Nike).
A experiência revela, contudo, que a proibição, sob ameaça de prisão, não garante a abstenção do usuário (basta lembrar da experiência da lei seca norte-americana, cujo principal resultado foi a explosão da criminalidade com o enriquecimento de máfias e que levou ao descrédito da Justiça e à desmoralização das autoridades).
As penas de advertência sobre os efeitos da droga, de prestação de serviços à comunidade e a medida de comparecimento a programa ou curso educativo, todas previstas na lei em vigor, são preferíveis à pena de prisão, mas não são eficazes na redução do consumo.
O consumo de drogas, ilícitas ou não, é a regra no mundo de hoje, não a exceção. Nunca nos disponibilizaram tanta droga (é verdade que nem todos têm acesso a esse mundo do consumo, seja por causa do alto valor do produto, seja porque pertencem a uma classe social em relação à qual não se tolera o mesmo comportamento da chamada elite). Como diz Vera Malaguti Batista, há drogas para dormir e drogas para acordar, drogas para emagrecer e para engordar, para sonhar, para vencer, para ser feliz, para acelerar, para concentrar, para fornicar... É no mínimo curioso o fato de sermos incentivados a substituir o esforço pessoal pela satisfação imediata que algumas drogas, as “boas”, nos oferecem e, ao mesmo tempo, termos vedado o acesso a outras drogas, as “más”. A situação é comparável a outro quadro. Nossas leis de trânsito determinam como infração ultrapassar a velocidade máxima permitida, mas a indústria automobilística pode nos vender automóveis que desenvolvem mais de três vezes aquele limite... Compramos a promessa de velocidade, vale dizer, a garantia de sucesso, poder e prestígio social. Somos estimulados a transgredir?
Mais uma vez tem razão Ferreira Gullar ao dizer que, “do mesmo modo que a maioria dos consumidores de bebidas alcoólicas não é alcoólatra, a maioria dos consumidores de drogas as consome socialmente”. Bem, ainda que a afirmativa possa não ser válida para todos os tipos de droga – o crack, para citar somente este caso, tem capacidade de gerar um número maior de usuários compulsivos, principalmente entre a população pobre que não tem acesso a drogas caras –, permanece válida diante de um quadro mais geral de usuários. Por isso mesmo, não tem sentido tratá-los a todos como doentes. Também por isso não é razoável convocar o direito penal, mesmo que por intermédio de penas alternativas à prisão. Dentro da lógica da proibição o consumidor é vitimizado, ou imbecilizado, ou, o que está mais em voga ultimamente, culpado pelo resultados da violência na guerra ao tráfico.
Acontece que no terreno do proibicionismo o diálogo também está proibido, não há lugar para a argumentação, para o convencimento (o capitão Nascimento não tem que se justificar quando enfia um saco plástico na cabeça do bandido, porque, afinal, será sempre para o bem de todos, pela e para a boa sociedade – não há excessos quando os fins justificam os meios, pois, afinal, o capitão, na clássica tensão entre lei e ordem, inventa sua própria lei, quando a lei a quem deve obediência não é suficientemente “boa” para garantir a manutenção da ordem). Aliás, os motivos, os meios e os fins já estão predeterminados, já foram definidos nessa guerra, cumpre demonizar o traficante, o inimigo público nº 1, a personificação do mal, e imbecilizar a vítima, o usuário de drogas.
A lógica do combate não é dialógica. Uma conversa franca sobre drogas implica desnaturalizar ideias, apontar distorções e erros, historicizar conceitos, arrefecer ódios, paixões e medos, substituir a violência pela inteligência, enfim, abrir o debate, voltar à discussão que foi encerrada pela criminalização.
Quando a incriminação de um comportamento deixa de corresponder à opinião de uma grande massa de cidadãos, desaparece a justificativa democrática para manutenção da lei. Se o tratamento da questão do consumo parece caminhar para a adoção de alternativas à prisão ou mesmo da própria descriminalização – o que não significa, necessariamente, ausência de controle por outros meios diversos do aparato criminal –, não seria absurda nem desastrada a adoção de medidas correspondentes em relação à produção e ao comércio de droga. Assim, por exemplo, trocar a prisão do pequeno traficante por trabalho comunitário é medida perfeitamente consequente com a abolição da prisão para o consumidor. Qualquer resposta diferente do proibicionismo rotundo implica, no mínimo, reduzir a resposta criminal também em relação ao comércio de drogas, porque, em última análise, é inconcebível tolerar o uso e, ao mesmo tempo, proibir o comércio. Acabar com a pena para pequenos traficantes não é liquidar com a Justiça. Não há menos justiça sem a polícia. Sem a polícia, sobretudo no específico caso do pequeno traficante, pobre, primário, em sua maioria jovem e sem perspectiva de inclusão no mundo do consumo, padrão atual de felicidade e realização pessoal, o que se reduz é a violência.
A pergunta, e aqui já está manifesta a discordância de opinião com o autor do artigo, não é se a sociedade, há séculos, pune criminosos e estaria disposta a acabar com a Justiça e com o aparato policial, a despeito de sua incapacidade de redução do crime. Cumpre, antes, perguntar se é legítimo um direito que contraria a realidade social dos fatos e, além de se mostrar incapaz de afetar o resultado a que se propõe impedir, acaba produzindo, principalmente entre a população mais vulnerável – os pobres – mais danos do que a própria droga pode trazer à “saúde pública”, sem alterar o status daqueles beneficiados pelo rentável negócio do tráfico.
Importa perguntar, antes, pela natureza do processo pelo qual, através dos séculos, definiu-se o que seria crime e quem seriam os criminosos, distribuindo-se desigualmente a justiça, como nos ensina a história do poder de punir.
Não é verdade que o sistema é ineficiente para prender o traficante. Ele simplesmente não consegue cumprir a promessa de condenar e prender os atores mais importantes no cenário do tráfico e de condenar e prender na proporção em que a norma penal é infringida.
Mesmo assim, o tráfico é o campeão das prisões. Segundo dados do InfoPen, Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, do Ministério da Justiça, o tráfico de droga assume a liderança, em dezembro de 2008 – aí já contabilizadas as condenações com fundamento no artigo 33, da Lei nº 11.343/2006 (a nova lei de drogas), do número total de presos no sistema penitenciário brasileiro, ultrapassando as condenações por roubo com emprego de arma (e/ou as demais situações previstas no art. 157, § 2º, do Código Penal).
Um ano depois, dezembro de 2009, o tráfico não apenas continua sendo o responsável pela maior quantidade de presos, como também toma distância do segundo colocado no ranking do encarceramento brasileiro – que, em dezembro de 2009, computados os presos, condenados ou provisórios, e os destinatários de medidas de segurança, tanto de internação quanto de tratamento ambulatorial, de penitenciárias e carceragem da polícia civil de todas as unidades federativas, é de 473.626 (registrado, portanto, um aumento de 22.407 presos em relação ao ano anterior - pode-se observar que o número de prisões por tráfico, em dezembro de 2009 (91.037), constitui quase a quinta parte do número total de encarcerados do sistema (473.726). Esse incremento pode sugerir também – conclusão plausível, que após a despenalização do porte para consumo pessoal, modificação operada pela nova lei de drogas (art. 28, Lei nº 11.343/2006), ocorreu uma “migração”, para a coluna do tráfico (art. 33, ex-artigo 12), de condutas que antes, na vigência da Lei nº 6.368/76, seriam melhor classificadas pelo juiz criminal como porte para uso próprio (art. 16 da lei revogada). O fim da pena privativa de liberdade para o consumidor (art. 28, Lei nº 11.343/2006) poderia explicar uma certa resistência do julgador em relação à mudança legislativa, por conta de uma sensação de impunidade dela decorrente?).
A nomenclatura usada na tabela (roubo “qualificado” e “entorpecente”) é fiel ao texto original divulgado pelo InfoPen. Sabe-se, contudo, que a hipótese do § 2º, do art. 157, do CP, na forma técnica correta, é denominada de roubo com aumento de pena; e que a Lei de Drogas em vigor substituiu o termo “entorpecente” por “droga”.
O tráfico somente vai perder o lugar de campeão das prisões se o segundo colocado – roubo com aumento de pena (art. 157, § 2º, CP) – se somar ao roubo simples, ou ao furto simples ou qualificado.
Enfim, as propostas de redução ou eliminação do direito penal para o tratamento da droga não se conformam a um conceito dado de crime, mas, ao contrário, problematizam a premissa proibicionista, examinando os resultados colhidos até agora pela solução criminalizadora e beligerante. Não é absurdo pensar que, preso, o pequeno traficante poderá ser ter acesso aos grupos organizados em torno do negócio do tráfico, ou seja, subir de posto no mercado de trabalho das drogas, mas o principal motivo que, a meu ver, fundamenta o tratamento diferenciado ao pequeno traficante é a convicção de que o direito penal não vai conseguir acabar com o tráfico, porém, levado às últimas consequências da pretensão proibicionista, vai produzir uma estatística impressionante de encarceramento, deixando intacta a questão que está na raiz desse problema: não há como alcançar redução de uso com incremento de punição pelo tráfico.

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